Carta à minha avó

13-02-2020

Sónia Machado

Querida Avó

Muito tem acontecido ao longo destes quarenta anos em que não voltámos a falar, e a verdade é que a ideia de te escrever estas palavras trouxe-me as lágrimas aos olhos. Sinto-te no meu peito, nos olhos e na garganta, como um aperto, uma constrição de emoções escondidas, porque parecerá certamente ridículo aos olhares alheios que ainda me comova nestes momentos.

Desde que te vi pela última vez - quando, na cama daquele quarto de hospital, em Santa Maria, antes da tua cirurgia, com a cabeça encostada ao teu ombro por cima dos lençóis brancos, te abracei e te disse até amanhã - tornei-me numa pessoa adulta. Tenho uma filha com onze anos, linda e pertinaz, que quis conhecer-te quando tinha sete. Nessa altura tive que a levar ao cemitério, para que conhecesse os seus antepassados, pois era literalmente esse o seu pedido. Ela gostou e eu também.

Porém, entretanto, demorei muito tempo a fazer o luto da tua morte. Cerca de vinte anos é demasiado. Os psicólogos dizem que a isto - manter os sintomas do luto durante um período superior ao habitual - se chama luto patológico, ou seja, fora do normal. Mas o que sabem eles sobre o que é normal, pensava eu. Sabem lá eles o quanto me doeu perder-te, e o quanto me moíam as saudades do teu amor. Dizem que cada pessoa tem o seu tempo, e que quando se "deixa ir" o ente querido, então o processo de luto está completo.

Eu tinha cinco anos, e recordo-me hoje com a mesma nitidez de então. A prima C. deu-me a notícia e eu, naquele exato momento ainda desconhecendo as palavras que nomeavam o que senti, achei-a bestial, bruta e insensível quando, de lá, de onde as escadas começavam a subir a sua voz ecoando e eu, cá em cima, a olhar para a espiral de escadas que desciam com a cabeça por entre os intervalos das barras de ferro do corrimão, ouvi

é só para dizer que a avó morreu.

Assim; sem mais nada.

A mim. Disse-mo a mim, que só tinha cinco anos, e tinha o meu pai lá dentro, em casa, comigo. Recordo-me de estar depois sobre a cama do meu quarto a chorar ao lado do meu pai, que também chorava sentado, com os meus braços enganchados à sua volta e a morrer contigo.

Desculpa, parece que te faço queixinhas, ainda por cima tanto tempo depois. Não percebo porque é que a morte continua a ser uma espécie de tabu, algo de que não se fala a não ser nos velórios. As pessoas sentem que incomodam as outras se lhes falarem sobre o familiar que morreu e sobre o que estão a sentir, tendem a isolar-se, a cavar buracos no peito que demoram muito a serem fechados, como se criassem cemitérios dentro de si, sem corpos e sem ritos de transição, e deixam as feridas abertas na pele intacta, sem cicatrizes. Comigo creio que foi assim. Não me lembro de falarem comigo sobre isto, assim como não falámos de muitas outras coisas, especialmente as afetivas, e na nossa família não sabiam nada sobre psicólogos nem psicoterapias naquela altura. Acho que pensavam que por eu ser criança talvez não sentisse tanto ou, para se protegerem e a mim da dor da realidade permitiram-se pensar que a tua perda seria, para mim, menos significativa do que realmente foi. Ou que seria melhor não falarmos sobre o assunto e talvez assim eu me esquecesse depressa e portanto sofresse menos.

Ao longo do tempo percebi que um dos meus sentimentos mais obscuros era a raiva, que resultava da frustração e da tristeza por não haver algo que tivesse evitado a tua morte, ou por não haver alguma coisa que eu pudesse fazer para te trazer de volta. Por isso desenvolvi várias formas ineficazes para manejar essa raiva, por exemplo, com pensamentos de vingança direcionei-a para os médicos, e durante muito tempo mantive em segredo que os mataria a todos quando crescesse, por não terem sido capazes de salvar-te. E à medida que fui crescendo, sempre com bom comportamento e sem problemas de aproveitamento na escola, acabei por, aos poucos, insidiosamente, virá-la contra mim; manteve-se latente, no extremo e já na idade adulta, em comportamentos que os especialistas designariam por equivalentes suicidas e desafiadores da morte, ou seja, entre fumos e álcool em ambientes chiques e underground. Subconscientemente, a raiva evitava que eu sentisse a dor que a aceitação afetiva da tua perda implicava, era a minha anestesia. Intelectualmente, eu já tinha aceite que te perdera, já tinha mecanismos psicológicos suficientemente sofisticados e quantidade bastante de livros lidos, mas além disso, o meu processo de luto prolongava-se. A minha tristeza era uma drag queen.

Esse meu modo de processar a informação, e portanto a minha forma de sentir o mundo e de viver no mundo, veio a dificultar-me a formação de vinculações no início da adultícia, porque eu confiava pouco nos outros, e vivia de novo aquela sensação desorganizadora, por vezes, perante o que interpretava como a possibilidade de uma nova perda. Diz a literatura científica que quando o sofrimento causado pela perda de alguém querido não é reconhecido e cuidado, por quaisquer que sejam os motivos, ele pode vir a ser reativado e a produzir reações nocivas noutras relações. Concordo, por experiência própria e por observação. Hoje sabe-se também que o afastamento das crianças do momento da morte e dos rituais que lhe estão associados conduz a maiores dificuldades, sentidas por elas, em se adaptarem à perda. Parece que é mais adaptativo se todos participarem no processo, promovendo a partilha e a coesão como forma de apoio, embora preservando o respeito pelo espaço de cada um. As boas intenções nas tentativas de proteger as crianças da exposição à morte mantêm-nas isoladas da experiência partilhada, e colocam-nas em risco de não realizarem ou realizarem mal o seu processo de adaptação à perda.

Felizmente vivo, há vinte anos, sem a dor da tua ausência. E concluo agora, ao escrever-te, e reformulando o meu pensamento, que afinal o Borges não tem razão, e despedir-se não é negar a separação; esse é um artifício poético bonito, contudo crer que hoje fingimos que nos separamos mas ver-nos-emos amanhã, é apenas fingir o fingimento, porque nunca se consegue negar na realidade a separação, e enquanto o tentarmos ela continuará a perseguir-nos.

Agradeço-te muito pelo que me ensinaste.

Com amor,

adeus.


Nota: Este texto é ficcionado a partir de experiências coletadas junto dos meus pacientes.