Eros & Thanatos

21-11-2018

Por: Sónia Machado

Satisfaz-me muito saber que há instituições que se dedicam, ou pelo menos parte da sua atividade, a temas considerados delicados por parte da população Portuguesa, sejam aquelas cristãs ou não-cristãs; apesar de que o facto de assim se definirem me suscita algumas questões, sobre as quais, no entanto, não pretendo discorrer aqui. Tenho ouvido dizer que o tema da violência sexual contra crianças é algo muito sensível e, portanto, as pessoas - responsáveis pelas crianças, nestes casos - preferem não o abordar. Este fenómeno recorda-me um outro que observei, e embora num contexto diferente, é da mesma natureza que o primeiro.

Estava eu no Cairo, há vários anos, ainda antes da ocorrência da Primavera Árabe e das decorrentes manifestações noticiadas na Praça Tahrir, a trabalhar num projeto em desenvolvimento para uma instituição privada de ensino, enquanto simultaneamente realizava atividade voluntária numa associação de apoio a doentes com cancro da mama. No âmbito do trabalho desta Associação inseria-se a dinamização de ações de sensibilização para entidades públicas e privadas, e para a comunidade em geral, com o intuito de divulgar a informação sobre a doença e de assim promover comportamentos de prevenção, nomeadamente a adesão a consultas de rastreio e diagnóstico precoce. Contudo, a ideia geral prevalente era a de que as mulheres Egípcias, assim que ouviam falar de cancro da mama, fugiam a sete pés para o outro lado da estrada. Consequentemente, os diagnósticos eram quase todos efetuados tardiamente, o que por sua vez dificultava o tratamento e aumentava a agressividade do mesmo. Mas, ainda assim, as pessoas continuavam a evitar ouvir ou falar sobre o assunto. Como se permanecer ignorante fosse o mesmo que permanecer inocente. Ou como se a doença oncológica se transmitisse pela informação.

A proximidade da informação significa então a proximidade da doença ou da morte, e perante esta última, apenas e sempre, há duas hipóteses - lutar ou fugir - e a mais imediata é a resposta de fuga. Esta está pré-programada no sistema límbico, evolutivamente uma das partes mais primitivas do nosso cérebro (mamíferos), de modo a assegurar a sobrevivência. Lutar, neste caso, no qual a ameaça se situa ainda num plano hipotético, imaginário, requer o envolvimento das estruturas mais recentemente evoluídas, do neocórtex, que determinam a ação através da vontade consciente, que estabelecem as ligações afetivas e o planeamento voluntário. É aqui, neste plano, que ocorre a participação ativa na recolha e no processamento da informação, e a adoção de comportamentos de prevenção.

Entre os mencionados planos filogenéticos do sistema nervoso central há milhares de anos de história evolutiva do ser humano, estaremos a falar de uma questão de evolução quando pensamos em comportamentos preventivos? Os temas não são sensíveis, as pessoas sim. Prevenir obriga-me a ter consciência da minha morte. Enquanto que saber do sofrimento do outro e das suas consequências nele, coloca-me à distância e faz-me criar a ideia de que assim, embora entregue à sorte e nela tendo fé, continuo vivendo.

"Eu também irei levando até ao fim, gravadas em

profunda incisão na minha memória, as

recordações de muitos que comigo morreram e

que, deste modo, em mim continuam vivos."

Lobo Antunes, J. (2005)