As expectativas e a relativização do conhecimento

12-11-2017

Por: Sónia Machado

Há pouco tempo, deparei-me com um discurso online sobre as expectativas. Não sei se já repararam mas, hoje em dia, especialmente em contexto de certas práticas espirituais e/ou de desenvolvimento pessoal, a criação de expectativas é um argumento bastante utilizado para justificar a origem do sofrimento individual. De modo geral, eu tenho mantido uma posição de mera observadora deste tipo de conteúdos.

Mas a pessoa tecia um comentário a uma conversa que teve sobre "a possibilidade de magoarmos alguém". E defendia que, são os outros que magoam a si mesmos através da criação de expectativas, que são eles os causadores da sua própria mágoa e, que isso, nada tem a ver connosco. Apelava por isso, no seu vídeo online, a que aqueles trouxessem a responsabilidade a si mesmos e que refletissem sobre isso.

Foi então o que fiz, refleti e cheguei à conclusão de que esse é um discurso leviano e que pode ser bastante desfavorável a pessoas em situação de fragilidade que procuram ajuda nestes lugares. Porquê?

Em primeiro lugar, parece-me que o ser humano só existe na relação com o outro. Através dos laços relacionais, sociais e afetivos, que vai formando ao longo da sua vida, é que ele se constrói como pessoa, e é capaz de sair de si para ir ao encontro do outro, nesse espaço comum que é a relação. E isto é algo que faz parte da estrutura adaptativa do ser humano desde o nascimento. Os bebés, por exemplo, têm expectativas. O bebé que tem fome "sabe" que se chorar, pouco tempo depois o seio materno ou o biberão aparecerá e satisfará a sua necessidade de comer. Ele tem uma expectativa - uma representação interna - sobre o futuro, que criou na relação com os seus cuidadores, que por sua vez regula o comportamento de ambas as partes, e lhe permite portanto prever as consequências do seu comportamento e o comportamento do outro, de forma relativamente simples e correta. E isto dá-lhe uma sensação de segurança.

As expectativas e a segurança são também o motor da ciência. A colocação das hipóteses à prova de falsificação, e a verificação consistente e robusta de que são verdadeiras é o que permite estabelecer previsões com maior ou menor grau de segurança.

E nada disto depende unicamente de um indivíduo, o criador das expectativas. Depende sempre do outro também, o que está do outro lado. As expectativas não são a mesma coisa que as ilusões. As expectativas são baseadas em informação credível obtida a partir da realidade exterior e interior, quer seja a promessa de amor pelo ser amado ou a promessa de cuidados pela mãe, que se renova e reforça diariamente nos comportamentos e nos pensamentos partilhados por ambos, mesmo quando não estão fisicamente juntos. Mas não estou a dizer que as expectativas são infalíveis, não o são obviamente, são apenas uma aproximação à realidade futura, uma previsão, uma probabilidade com um certo grau de confiança, mas cuja função é até por isso importante.

Dizer-me que a responsabilidade é só do outro porque foi ele que criou as expectativas, é desresponsabilizar-me. Em Árabe há uma palavra - amanah - que significa (de modo muito abreviado) a responsabilidade moral de cumprir as suas obrigações para com os outros.

Somos todos moralmente responsáveis por nós, incluindo o realismo das nossas expectativas, e pelos outros, enquanto nos relacionamos com eles. Não cumprir essa responsabilidade é quebrar a confiança e dececioná-los. E todos sabemos que o comportamento decetivo é evidente e frequente tanto no mundo humano, como no mundo animal. Ou seja, pensemos, por exemplo, no indivíduo que mente, ou que oculta a verdade ou parte dos factos, com a intenção de criar no outro uma ideia sobre si que não corresponde à realidade, e assim manter ou alcançar determinado objetivo, seja ele afetivo, social, económico ou territorial.

Voltando ao início e ao que me levou a escrever este texto, penso que a causa do sofrimento não é a criação de expectativas mas antes a deceção. E que o mais importante a transmitir e, fundamentalmente, a ensinar às nossas crianças, não é como anular o futuro, pedindo-lhes que não o imaginem, mas sim como lidar de forma saudável e construtiva com a deceção e como ser responsável. Todas as certezas são provisórias, mas essa relativização não isenta cada um da responsabilidade que tem para consigo, isto é, de conhecer-se e desse modo construir as suas expectativas com base em informação fiável da realidade; nem da responsabilidade que tem para com o outro, levando-se a respeitar a liberdade daquele e por isso disponibilizando-lhe a informação adequada e verdadeira, para que também ele possa escolher como posicionar-se, atempadamente.